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FSI #1

por NCAEFFUP, em 24.05.15

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Entrevista ao Professor Doutor Félix Carvalho

“(…) não devem esperar que alguém repare em vocês, têm de ser pró-ativos!”

 

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Recentemente, um trabalho desenvolvido no Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto deu origem a um artigo científico que foi distinguido com uma menção honrosa atribuída pela Sociedade Americana de Toxicologia (SOT). O trabalho, publicado na revista Toxicological Sciences, intitula-se "The mixture of "ecstasy" and its metabolites impairs mitochondrial fusion/fission equilibrium and trafficking in hippocampal neurons, at in vivo relevant concentrations" e tem como primeiro autor Daniel José Barbosa, antigo aluno de doutoramento da FFUP. De forma a saber um pouco mais acerca deste estudo, o NCAEFFUP foi falar com o docente orientador, o Prof. Dr. Félix Carvalho.

 

Para começar, pode explicar-nos porque decidiu enveredar pelo estudo de uma substância como a ecstasy?

Uma boa forma de enquadrar o aparecimento deste trabalho passa por lhes explicar como iniciei a minha carreira de investigação científica, ainda enquanto aluno na FFUP. Há algum tempo atrás, ainda como aluno do 2º ano do curso de Ciências Farmacêuticas, decidi dar os primeiros passos na investigação. Naquela altura percebi que o Professor Doutor Jorge Gonçalves era um dos investigadores com maior proficiência na Faculdade, numa área científica em que identifiquei rapidamente, o Sistema Nervoso Autónomo.

Os temas que na altura estavam a ser estudados no Laboratório de Farmacologia implicavam a utilização de anfetamina, entre muitos outros compostos, com o objetivo de se perceber o mecanismo de  libertação de neurotransmissores no canal deferente de rato. Nessa altura usava a anfetamina num contexto diferente daquele em que trabalho agora, ou seja, como ferramenta farmacológica. Após a licenciatura, apareceu a oportunidade de concorrer, com sucesso, para assistente estagiário do Laboratório de Toxicologia, mas o “bichinho da Farmacologia” veio comigo e, portanto, foi com alguma naturalidade que iniciei investigação na área das anfetaminas, sob a supervisão da Professora Doutora Maria de Lourdes Bastos. Desde 1991 que a investigação que realizo centra-se neste tipo de compostos. A ecstasy é uma das anfetaminas mais utilizadas e, com certeza, uma das mais tóxicas que existe neste momento no mercado, pelo que tem tido uma atenção substancial da nossa parte. Pode-se mesmo dizer que o nosso laboratório tem sido pioneiro em muita investigação que tem sido realizada com este tipo de compostos.

 

Como surgiu a ideia de avaliar a influência da ecstasy sobre as mitocôndrias?

Os primeiros estudos que realizamos sobre mecanismos de toxicidade da ecstasy levaram-nos a descobrir que o seu metabolismo hepático, com formação de metabolitos reativos, contribui de forma significativa para os efeitos tóxicos observados não só no fígado mas também em muitos outros órgãos. Posteriormente, em 2007, verificamos um efeito interessantíssimo da ecstasy a nível cerebral: após a administração desta droga a animais de laboratório, as mitocôndrias cerebrais eram severamente afetadas, visto que havia uma oxidação generalizada das suas biomoléculas. Verificamos também que o mecanismo envolvido neste efeito está relacionado com a ação de uma enzima chamada monoaminaoxidase, que existe na parede externa das mitocôndrias, e que levava ao aparecimento de H2O2 após metabolismo dos neurotransmissores. Outros trabalhos realizados pelo nosso grupo nessa altura permitiram demonstrar que havia uma grande acumulação de cálcio livre no interior dos neurónios. Ou seja, tínhamos as mitocôndrias a serem afetadas diretamente, um aumento de cálcio livre nos neurónios, assim como o conhecimento de que os compostos resultantes do metabolismo da ecstasy contribuíam significativamente para a sua toxicidade. A partir daí, tivemos um bom ponto de partida para o trabalho que foi realizado subsequentemente e que originou este reconhecimento internacional.

 

De uma forma geral, qual foi o grande objetivo deste trabalho?

Neste trabalho avaliou-se o potencial da ecstasy modificar a dinâmica mitocondrial em culturas de neurónios de hipocampo. E o que é isto da dinâmica mitocondrial em palavras muito simples? As mitocôndrias neuronais não estão estáticas, têm uma dinâmica peculiar, estando em constante movimento entre o corpo neuronal e as dendrites. Há também uma modificação do tamanho das mitocôndrias através de fenómenos de fusão, em que duas mitocôndrias podem se fundir, ou de fissão, em que elas se podem separar em organelos mais pequenos, processos de grande importância para a bioenergética neuronal. Sendo esta dinâmica fundamental para a sobrevivência dos neurónios, se as drogas forem capazes de fazer modificações a este nível, temos aqui uma possível explicação para os efeitos neurotóxicos.

 

Pode explicar como é que estudaram essas modificações na dinâmica mitocondrial causadas pela ecstasy?

O que nós fizemos inicialmente foi a marcação de uma proteína mitocondrial com um composto fluorescente. A partir dessa marcação, fizemos estudos em tempo real, com um microscópio confocal de fluorescência, de tal forma que conseguimos verificar, in vitro, em neurónios do hipocampo, a presença das mitocôndrias e a sua dinâmica. Conseguimos visualizar a sua circulação ao longo do axónio e dendrites, para que local é que elas se estavam a dirigir, a que velocidade o faziam, assim como o seu tamanho e os fenómenos de fusão e cisão. Era como se tivéssemos um GPS acoplado a estes organelos e conseguíssemos acompanhar toda a dinâmica mitocondrial; é um trabalho que se pode dizer apaixonante, pois conseguirmos ver o que se está a passar no interior dos neurónios durante a sua normal atividade. No trabalho realizado com a ecstasy, estudamos os seus efeitos na dinâmica mitocondrial em condições normais de consumo desta droga. Após o consumo de ecstasy, não é apenas esta droga que atinge o cérebro, mas também os metabolitos que são formados a nível hepático. Assim, testamos seis metabolitos, para além da ecstasy, nas concentrações que podem ser atingidas a nível cerebral em humanos.

 

E quais foram as principais conclusões a que chegaram?

Verificamos que a mistura de ecstasy e dos seus metabolitos originava um menor número de mitocôndrias a circular ao longo do axónio e das dendrites e diminuía a velocidade das que se mantinham em circulação. Para além disso, havia uma diminuição significativa do tamanho das mitocôndrias. Em consequência destes efeitos, pode-se esperar dois fenómenos de elevada importância: uma menor capacidade de fornecimento de energia aos terminais nervosos e também uma menor capacidade de tamponamento dos níveis de cálcio, uma vez que as mitocôndrias têm um papel importante na manutenção dos níveis de cálcio livre. Isso poderá contribuir de uma forma significativa para os conhecimentos atuais dos efeitos neurotóxicos destas drogas de abuso, assim como explicar a razão pelo que os terminais nervosos são destruídos deixando intacto o corpo celular. Este é um ponto de partida, inclusivamente, para perceber se a toxicidade de novas substâncias psicoativas com estrutura química semelhante à ecstasy têm também estas características tóxicas. Esse estudo está ainda por realizar e espero que no futuro possa ter mais estudantes de doutoramento ou de mestrado a trabalhar nessa área. A distinção concedida pela SOT honra-nos muito e revela a importância deste trabalho, não só pela sua contribuição para explicar o efeito neurotóxico da ecstasy, mas também pelo potencial desta metodologia para investigação de muitas doenças neurodegenerativas.

 

Este estudo, em termos práticos, que vantagens trará para a sociedade?

No nosso laboratório, temos direccionado a nossa investigação para a avaliação de mecanismos de toxicidade. Este tipo de investigação é importante, porque a compreensão dos mecanismos envolvidos nos fenómenos neurotóxicos, neste caso da ecstasy, poderá permitir o desenvolvimento de fármacos capazes de prevenir ou eliminar os efeitos tóxicos. Esperamos também que os conhecimentos adquiridos neste tipo de estudos possam vir a ser de grande utilidade quando aplicados no estudo e prevenção de doenças neurodegenerativas. Esta é uma área de trabalho nova com muito potencial, da qual se pode e deve esperar boas notícias!

 

Direcionando as questões para os estudantes que gostariam de fazer investigação, pode elucidar-nos se é crucial ter uma média de curso alta?

Claro que a média do curso é importante, mas pode ser complementada com experiência laboratorial e publicações científicas. Queria aqui deixar uma palavra de alento a todos os que sentem afinidade para a investigação. Nunca desistam de atingir os vossos objectivos uma vez que a investigação científica poderá ser uma via profissional muito interessante. Não pensem na investigação apenas do ponto de vista universitário, com a finalidade de prosseguirem a carreira de investigadores ou a docência. Pensem também nas oportunidades que podem aparecer nas várias indústrias na área química, bioquímica e farmacêutica, bem como e na área de fornecedores de serviços a estas indústrias, a nível nacional e internacional.

 

Acha que para ter sucesso na investigação é necessária uma carreira internacional?

Penso que não é uma condição necessária. Pessoalmente fiz praticamente toda a minha carreira no nosso país. O período máximo que estive fora foi um mês e meio, na Faculdade de Farmácia de Londres, a colaborar num trabalho de investigação. Em Portugal temos uma grande quantidade de grupos de investigação a realizar estudos de elevada qualidade. Quando pensarem em juntar-se a um destes grupos não se restrinjam à nossa faculdade. Tentem saber o que se investiga noutras faculdades da nossa universidade ou mesmo noutras universidades do país. Por outro lado, se aparecer a possibilidade de realizarem trabalhos com grupos de trabalho a nível internacional não deixem de aproveitar essa oportunidade. As competências que poderão adquirir com a percepção das diferentes formas de abordagem dos temas de investigação, a utilização de equipamentos de ponta, e os conhecimentos pessoais que poderão vir a adquirir, poderão constituir mais-valias fundamentais para a vossa evolução científica.

 

Tem algum conselho que gostaria de transmitir aos estudantes de modo a incentivá-los a fazer investigação?

Um conselho que posso transmitir é que não devem esperar que alguém repare em vocês, têm de ser pró-ativos! Isto significa que têm que pensar bem naquilo que gostariam de fazer no futuro. Esse é o primeiro trabalho de casa que tem que ser realizado com toda a calma e ponderação. Uma vez clarificadas as vossas ideias, há um segundo passo que consiste na pesquisa de especialistas a trabalhar na vossa área de interesse e posteriormente contactá-los pessoalmente. Eu comecei assim, no meu 2º ano como aluno da FFUP, após contacto com o Professor Doutor Jorge Gonçalves, iniciei as minhas actividades de investigação no laboratório de Farmacologia. Estou-lhe grato pela oportunidade que me deu, porque me permitiu contactar com trabalhos de investigação científica e foi esta experiência que mudou por completo a minha vida como profissional da área de saúde. Uma vez mais reforço a ideia de que não precisam de se cingir à nossa faculdade, na pesquisa dos investigadores mais adequados aos vossos objetivos. É provável que fiquem surpreendidos com a abertura dessas pessoas para receberem jovens com vontade de participar nos trabalhos de investigação. Sejam pró-ativos! Não vale muito a pena enviarem currículos… o melhor é contactarem pessoalmente com os docentes/investigadores, explicarem os vossos objectivos, mostrarem as vossas capacidades e competências e começarem muito cedo a controlar as variáveis que vão influenciar o vosso futuro, o mais cedo possível…

 

[Entrevista realizada por Ana Oliveira e Diana Reis da Cunha]

 

 

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